quarta-feira, 26 de novembro de 2008

A GEOGRAFIA ESCOLAR DE YVES LACOSTE E SUA INCORPORAÇÃO NA GEOGRAFIA ESCOLAR CONTEMPORÂNEA .

RESUMO

Este trabalho tem como proposta, a partir da análise da crítica elaborada por Yves Lacoste à Geografia Escolar, o estudo das mudanças ocorridas na geografia após o Movimento de Renovação da Geografia ocorrido na década de setenta no Brasil. Nosso objetivo é analisar algumas idéias de Yves Lacoste, tais como pensamento crítico, dicotomização da Geografia e reversão da forma como ocorrem as aulas de geografia – os conteúdos sendo apenas memorizados pelos alunos. A partir disso, refletiremos sobre como estas idéias foram incorporadas no Ensino de Geografia realizado no Brasil.
Em seguida, será feita uma breve análise sobre como ocorreu o ensino de Geografia nos diferentes períodos históricos, quando a geografia foi influenciada prioritariamente por uma ou outra corrente filosófica. Dessa forma, resumidamente, este estudo esboçará como se estrutura a ensino de Geografia nessas diferentes correntes.
Por fim, refletiremos sobre o discurso crítico que ressalta com maior ênfase na Geografia Crítica, em que as idéias de Yves Lacoste foram as mais influentes.

PALAVRAS-CHAVE: Geografia Escolar, Yves Lacoste, Geografia Crítica.



INTRODUÇÃO

A partir das leituras de obras referentes ao Ensino de Geografia e da obra específica de Yves Lacoste, “A Geografia- isso serve em primeiro lugar para fazer a guerra”, pretende-se abarcar uma discussão a respeito da contribuição da Geografia para o aprimoramento do senso de criticidade do aluno e do professor, num compromisso com a melhoria da sociedade a partir do ensino, buscando a formação da cidadania plena, entendendo que a cidadania é algo conquistado, porém, a educação é uma via dessa conquista/liberdade.
Assim, temos como principais objetivos neste estudo, uma reflexão do Ensino de Geografia obedecendo as seguintes etapas apresentadas abaixo:
- Realizar uma discussão sobre os pressupostos apresentados por Yves Lacoste (1988) referentes à Geografia Escolar, diferenciando-a da Geografia dos Estados-Maiores;
- Analisar as principais características da Geografia Escolar nas diferentes correntes do pensamento geográfico, em específico o Positivismo, o Neopositivismo e o Materialismo Histórico e Dialético;
- Analisar as contribuições que a Geografia Crítica teve para o Ensino de Geografia a partir do Movimento de Renovação no Brasil, e discutir se da forma como é aplicada nas salas de aula ela realmente contribui para ampliar o senso de criticidade dos alunos em suas visões de mundo.
Sendo assim, neste trabalho será desenvolvida apenas uma discussão de base teórica sobre o Ensino de Geografia em diálogo com os autores que tratam desta temática e das experiências dos autores adquiridas (em processo) com o estágio de observação e com experiências de oficinas temáticas e lúdicas desenvolvidas junto ao Programa de Educação Tutorial (PET) e realizadas em escolas públicas no município de Londrina e região.
As leituras realizadas tiveram como base o livro intitulado “A Geografia - isso serve em primeiro lugar para fazer a guerra”, do francês Yves Lacoste (1988), bem como outros livros e artigos de periódicos referentes ao Ensino de Geografia, à Epistemologia da Geografia, e em específico à relação entre ensino e Geografia Crítica, em que se destaca como a mais disseminada dentro dos discursos dos professores e do plano curricular estadual que norteia o ensino de Geografia.

REFLEXÕES SOBRE A CIÊNCIA GEOGRÁFICA

A ciência geográfica e o Ensino de Geografia passam, desde o século XIX, por uma dinâmica constante de transformações, tendo cada uma de suas fases o embasamento prioritário em uma determinada corrente filosófica. Estas fases, resumidamente, tendo como as principais: a Geografia Tradicional, a Geografia Neopositivista e a Geografia Crítica.
A Geografia Tradicional, vigente no final do século XIX, momento em que a Geografia passou a ser reconhecida como um saber científico, possuía um método de observação e descrição dos lugares, método este que irá perdurar por um grande período e que terá uma forte repercussão na Geografia Escolar aplicada nas escolas da época, tendo como enfoque uma Geografia Regional. Assim, a leitura que se fazia do espaço geográfico era enumerativa e acrítica, desprovida de uma análise das contradições sociais inerentes aos conteúdos geográficos. Após isso, na busca de uma visão totalizante do espaço, surge, na década de 50 do século XX, a Geografia Neopositivista, pautada em modelos matemáticos e estatísticos. Assim, os sistemas de informações geográficas, como o sensoriamento remoto, a informática, entre outros recursos, serão os elementos chave na compreensão da realidade da corrente Neopositivista, que, dessa forma, apreenderá o espaço geográfico de maneira abstrata, distante da realidade concreta.
No mesmo contexto que emergia a Geografia pragmática, lançavam-se em alguns lugares do mundo outras formulações teóricas, que tentavam realizar uma leitura mais próxima da realidade total dos fenômenos. Seriam estas idéias as precursoras do Movimento de Renovação no Brasil e no mundo.
As formulações teóricas do materialismo histórico-dialético, propostas por Karl Marx, são então absorvidas por numerosos geógrafos, reformulando, assim, os pressupostos teórico-metodológicos da disciplina. Inicia-se, assim, a Geografia Crítica ou Radical.
No que tange à ruptura com a Geografia Teorética ou Neopositivista, geógrafos brasileiros que se destacam nesse contexto são Armando Corrêa da Silva, Ruy Moreira, Milton Santos, Ariovaldo U. de Oliveira, entre outros. No entanto, estes autores vão se basear em autores de fora do país para trazerem a discussão crítica para a Geografia brasileira. Nesse sentido, o francês Yves Lacoste (1988) e outros geógrafos que colocam na pauta de discussão as contradições do capitalismo e a Geografia desenvolvida em sala de aula (problemática muito bem elaborada por Lacoste em A Geografia – isso serve em primeiro lugar para fazer a guerra).
Yves Lacoste, em seu livro, pressupõe a existência de duas Geografias, uma em relação à Geografia dos Estados Maiores e ao outra da Geografia dos Professores. Como ressalta Yves Lacoste (p. 31, 1988)

Uma, de origem antiga, a geografia dos Estados-maiores, é um conjunto de representações cartográficas e de conhecimentos variados referentes ao espaço; esse saber sincrético é claramente percebido como eminentemente estratégico pelas minorias dirigentes que o utilizam como instrumento de poder.
A outra geografia, a dos professores, que apareceu há menos de um século, se tornou um discurso ideológico no qual uma das funções inconscientes, é a de mascarar a importância estratégica dos raciocínios centrados no espaço. Não somente essa geografia dos professores é extirpada de práticas políticas e militares como de decisões econômicas (pois os professores nisso não têm participação), mas ela dissimula, aos olhos da maioria, a eficácia dos instrumentos de poder que são as análises espaciais. Por causa disso a minoria no poder tem consciência de sua importância, é a única a utilizá-las em função dos seus próprios interesses e este monopólio do saber é bem mais eficaz porque a maioria não dá nenhuma atenção a uma disciplina que lhe parece tão perfeitamente “inútil”.

Dessa forma, essa Geografia Escolar perdurou por muito tempo, criando no imaginário das pessoas uma visão simplista da Geografia, questionando até mesmo seu status de cientificidade. Não é de estranhar essa repulsa pela Geografia que era ensinada nas escolas, já que apresentava como características, um conhecimento de caráter elementar caricatural ou insignificante, baseada em reproduções caricaturais e mutilantes, inculcadora de elementos de conhecimento enumerados sem ligação entre si (o relevo - o clima – a vegetação – a população...), e de caráter essencialmente memorativa – “impõe-se, implicitamente, que não é preciso senão memória” para saber Geografia. (LACOSTE, 1988)
O próprio Yves Lacoste aponta as características do ensino escolar em relação à Geografia:

O discurso geográfico escolar que foi imposto a todos no fim do século XIX, e cujo modelo continua a ser reproduzido hoje, quaisquer que pudessem ter sido, aliás, os progressos na produção de idéias científicas, se mutilou totalmente de toda prática e, é a única a aparecer, por excelência, como um saber sem a menor aplicação prática fora do sistema de ensino. (LACOSTE, 1988, p.56)

Nesse sentido, a forma tradicional de ensinar Geografia nas escolas foi importada e introduzida no país, pois como aponta Pontuschka (1994), no Brasil o Ensino de Geografia desenvolvido antes da fundação do curso de Geografia na Universidade de São Paulo (USP) em 1934, não se diferenciava do ensino dos países da Europa, deste modo, no Brasil esta disciplina também se desenvolveu como uma disciplina de memorização dos lugares e dos objetos geográficos.
Esse caráter de acriticidade em que se encontravam as análises sobre o espaço geográfico tem como ruptura a incorporação de ideais marxistas a partir das décadas de 60 e 70, e que no Brasil tem como marco o Movimento de Renovação da Geografia, em que:

O primeiro momento da renovação foi o da crítica ideológica. É a fase lacosteana da renovação: denúncia da Geografia do Professor, o discurso do saber “neutro, inútil, ingênuo e desinteressado”, discurso que esconde na “paisagem-espetáculo” a face do seu real comprometimento, e denúncia da Geografia dos Estados Maiores, o saber “estratégico” e circunscrito ao domínio que lidam com espaço (daí a preocupação de Lacoste com o mapa), como arma de construção de hegemonias de uns poucos sobre muitos. (MOREIRA, 2007, p. 31)

A partir disso, as análises sobre o espaço geográfico passam a ter outra abordagem, agora comprometida com o pensamento crítico do aluno, evidenciando e agindo sobre máscaras sociais que a Geografia dos Professores não evidenciava.
Nessa nova Geografia Escolar comprometida com a acriticidade do aluno, ou seja, trazer a realidade dos alunos para a sala de aula e desenvolver nos alunos um senso crítico, comprometido com a formação de cidadãos plenos. Visentini (2004, 228), um dos autores dessa nova Geografia Escolar diz que:

Um ensino crítico da geografia não se limita a uma renovação do conteúdo – com a incorporação de novos temas/problemas, normalmente ligados às lutas sociais: relações de gênero, ênfase na participação do cidadão/morador e não no planejamento, compreensões das desigualdades e das exclusões, dos direitos sociais (inclusive os do consumidor), da questão ambiental e das lutas ecológicas etc. Ela também implica valorizar determinadas atitudes – combate aos preconceitos: ênfase ética, no respeito aos direitos alheios e às diferenças: sociabilidade e inteligência emocional – e habilidades (racicínio, aplicação/ elaboração de conceitos, capacidade de observação e de crítica etc.) (grifos do autor)

Contudo, as análises feitas sobre a Geografia Escolar brasileira contemporânea evidenciam fortes resquícios da Geografia dos Professores apontada por Lacoste, e também que a formação dos professores na dita geografia crítica não garantem uma emancipação do pensamento que seja realmente crítico. Compactuamos, assim, com o pensamento de Abreu (p. 13, 1996):

O discurso deve ir além, ou seja, não apenas escrever e/ou indignar-se com a segregação sócio-espacial, mas propiciar o aprofundamento de sua análise. A despeito disso, realiza-se, tão somente, uma crítica pela crítica, sem permitir aos educandos a compreensão do processo de produção e organização espacial.

Paralelamente a esse contexto, salientamos a importância do pensamento de Abreu (p. 15, 1996), a qual apresenta uma prática docente baseada numa não reflexão dos recursos utilizados em relação à metodologia de ensino, ao postular:

Como explicar um professor que tenha um discurso crítico frente à sociedade entende que a geografia tem um papel de desmistificar essa produção sócio-espacial, mas que desenvolve, na prática de sala de aula, um saber compartimentado, que contribua para a manutenção do status quo e que se entrega à reprodução acrítica do livro didático?

O que podemos extrair de nossas experiências é que existe um abismo entre a Geografia produzida nas universidades, com o discurso crítico da realidade, e a Geografia que se ensina nas escolas. Tendo em vista que o processo de ensino não é homogêneo, entendemos que a Geografia ensinada nas escolas evoluiu, mas que ainda carece de um debate mais intenso entre os professores da academia e os professores do ensino fundamental e médio.
Frente aos próprios desafios da Geografia Crítica em relação à Geografia Escolar, acreditamos que os esforços para uma efetivação dos conteúdos e práticas dessa Geografia devam transcender o território da sala de aula, ou seja, redirecionar a práxis transformadora tanto do docente como do aluno para o cotidiano, visando à transformação da sociedade.
Assim, a relação entre universidade e escola tem que ser ampliada para que os discursos, tanto o acadêmico como o escolar caminhem na mesma direção, pois as observações realizadas no estágio de observação e o diálogo com professores e alunos apontam para uma disparidade entre o que é produzido na academia e o que é ensinado nas escolas, e assim confluindo para uma superação dessa dualidade, caminhando de maneira consciente e prática.
Por fim, cabe salientar que este trabalho parte de uma iniciação e uma aproximação sobre o atual panorama do Ensino de Geografia, visando analisar e compreender as limitações da prática e do discurso da Geografia Escolar, tendo como preocupação central a formação como docentes, dos alunos na inserção de um pensamento crítico e o atual cenário da educação no Brasil. E dessa forma, visamos contribuir para o debate junto aos desafios colocados ao Ensino de Geografia e a própria ciência geográfica na contemporaneidade colaborando para superar as limitações em curso.

Trabalho oriundo de um projeto de pesquisa junto à disciplina Metodologia de Pesquisa em Ensino de Geografia

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABREU, Silvana de. Formação, discurso e prática: uma análise do professor de geografia. In: Revista de Geografia. Dourados: Revista da Associação de Geógrafos Brasileiros – Seção Local Dourados, n. 2, jan-abr, 1996, p. 10-17.

FONTES, R. M. P. do A. Da Geografia que se ensina à ciência da Geografia moderna. Florianópolis: UFSC, 1989.

LACOSTE, Yves. A Geografia – isso serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra. Tradução Maria Cecília França. 2 ed. Campinas: Papirus, 1988.

MOREIRA, Ruy. Pensar e ser em Geografia: ensaios de história, epistemologia e ontologia do espaço geográfico. São Paulo: Contexto, 2007.

______________. Para onde vai o pensamento geográfico? Por uma epistemologia crítica. São Paulo: Contexto, 2006.

PONTUSCHKA, N. N. A formação pedagógica dos professores de Geografia e as práticas interdisciplinares. São Paulo, 1994. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação da USP.

VESENTINI, J. W. Realidade e perspectiva do ensino de Geografia no Brasil. In:______ O ensino de Geografia no século XXI. Campinas: Papirus, 2004.

Um comentário:

educação via lazaro disse...
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